De: O Estadão
Kellen Ferreira, de 20 anos, estudante de Terapia Ocupacional na
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), está entre os 42 sobreviventes da
boate Kiss socorridos em estado grave na madrugada da tragédia.
Quase um ano após aquele 27 de janeiro, todos ainda lutam para
expelir a fuligem acumulada nos pulmões, contaminados pela fumaça tóxica que
matou, por asfixia, a maior parte das 242 vítimas do incêndio.
A voz deles perdeu potência, a tosse nunca para e o cansaço chega
depois de poucos passos.
Alguns sobreviventes passam o dia com um gosto de "borracha
queimada" na boca.
Outros relatam sentir, quando respiram, o mesmo cheiro da fumaça
que tomou conta da boate em menos de três minutos - eles tomam medicamento para
expelir um catarro negro.
"É como se eles tivessem fumado por mais de cem anos", diz Ana Cervi Prado, médica coordenadora do Centro Integrado de
Assistência às Vítimas de Acidente (Ciava), um ambulatório montado
exclusivamente para recuperar os feridos, onde vão ficar por mais quatro anos.
Kellen tenta retomar os movimentos das mãos, além de passar por
inalações diárias.
Ela se tornou um dos símbolos dos sobreviventes.
Durante 78 dias (20 deles em coma, na Unidade de Terapia
Intensiva), a estudante ficou internada em Porto Alegre, com queimaduras de
terceiro grau em 20% do corpo.
A jovem de 20 anos teve parte da perna direita amputada e enxertos
aplicados nos braços.
Antes de deixar o hospital, ficou sabendo que duas de suas
melhores amigas não conseguiram se salvar.
Quase um ano após aquela madrugada de horror, a jovem de
Alegrete/RS voltou às aulas, está novamente morando sozinha e parece pouco se
importar com as cicatrizes.
"Estou melhorando, até em boate eu já fui de novo, acredita?
Só que agora eu fico bem perto da porta de saída", conta Kellen.
O que ela mais quer de volta são os cabelos longos.
"Os médicos falaram que foi meu cabelo comprido que salvou as
costas das queimaduras."
De muletas e tosse constante, Kellen tenta seguir com bom humor
uma rotina de exames, fisioterapia e atendimento psicológico no Ciava, onde há
28 profissionais.
Das 145 pessoas hospitalizadas após o incêndio, 71 passaram pelo
centro, das quais 29 tiveram alta.
A fumaça liberada pela espuma sintética, que deixou as sequelas
nos sobreviventes, é de uso proibido pela legislação do Rio Grande do Sul e
tinha gás cianídrico, altamente tóxico.
Foi um gás mortal, segundo a polícia.
AMIZADES E NOVA VIDA
É na sala de espera do ambulatório, no Hospital Universitário da
UFSM, que muitos sobreviventes se tornaram amigos e confidentes.
É ali que os jovens, com uma idade média de 23 anos, encontram
sintonia e compreensão para desabafos de uma vida que não para de oscilar entre
momentos de alegria, pela nova chance de viver, e a angústia gerada por uma
rotina pouco comum entre os universitários.
No Centro Integrado
de Assistência às Vítimas de Acidente, Kellen, por exemplo, conheceu Bárbara
Feledeto, de 24 anos, que no dia da tragédia completava um mês de fim de namoro.
Depois, nos 40 dias que ficou internada entre a vida e a morte em
Porto Alegre, o ex-namorado se tornou a pessoa mais presente. Em julho,
reataram. Agora, casada, está grávida de quatro meses e ainda trata de uma
lesão pulmonar grave.
"Os primeiros seis meses de recuperação foram muito difíceis.
Mas é incrível como a gravidez colocou novo rumo na minha vida e trouxe uma
esperança de tudo novo", diz Bárbara.
RECOMEÇO
Desde outubro, quando começou a namorar, o tratamento contra a
lesão no pulmão se tornou menos angustiante para a estudante Camille Kirinus,
de 22 anos, que ficou nove dias na UTI após o incêndio.
Na tragédia, ela perdeu 13 amigas.
"Ele não sai do meu lado, me apoia demais. Estou feliz."
Camille espera ganhar autorização médica para praticar esportes e
mergulhar no mar.
Kellen também não vê a hora de poder ir à praia.
"Enquanto isso, em casa, chorando na minha cama, é que não
vou ficar. Quero terminar minha faculdade. Quem sabe não consigo fazer mestrado
no exterior, né?"
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