(Jardim Sílvio Sampaio, Campo Limpo, Zona Sul de S. Paulo) |
Ao deixar em 2014 a relação de países
que têm mais de 5% da população ingerindo menos calorias do que o recomendável,
o Brasil atingiu um feito inédito: saiu do Mapa da Fome da ONU.
Mas, após três
anos do feito, um relatório de 20 entidades da sociedade civil, publicado em
julho do ano passado, alertava sobre os riscos de o país retornar ao mapa
indesejado.
O economista Francisco Menezes, pesquisador
do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e da ActionAid
Brasil, fez parte da equipe que elaborou o relatório.
Nesta entrevista à Pública, o também
especialista em segurança alimentar conta que no final deste mês um novo documento
atualizado da sociedade civil será lançado.
E alerta: “A nossa nova advertência já leva
a quase uma certeza”. Essa quase certeza, ele diz, é de que o Brasil voltará ao
Mapa da Fome. “Toda a experiência sempre mostrou que os números da extrema pobreza
com os números da fome são muito próximos.”
Em relação à pobreza e extrema pobreza,
por exemplo, levantamento da ActionAid Brasil indica que nos últimos três anos
— 2015-2017 — o país voltou ao patamar de 12 anos atrás no número de pessoas em
situação de extrema pobreza.
Ou seja, mais de 10 milhões de brasileiros
estão nessa condição. “Isso nos leva a crer que aquela correlação
pobreza versus fome sugere fortemente que a gente já está, neste momento, numa
situação ruim, que deve aparecer com os dados da Pesquisa de Orçamentos
Familiares — POF — do final de 2018.”
A seguir, Menezes explica a combinação
de fatores que levou a essa situação que ele caracteriza como “estado de desproteção social”.
Pergunta.
A insegurança alimentar voltou a rondar o país?
Resposta. No ano passado, nós fizemos uma advertência à ONU de que, se o Brasil
prosseguisse no rumo mais recente que tinha tomado de certo abandono das
políticas de proteção social, correria o risco de retornar ao Mapa da Fome do qual
saiu em 2014.
Publicamos esse relatório em julho de 2017, e um novo relatório
de acompanhamento desses objetivos do desenvolvimento sustentável vai sair ao
final deste mês.
O
que nós assinalamos naquela primeira advertência vem sendo confirmada agora.
P.
Como se chegou a essa constatação?
R. A
cada cinco anos é feita uma pesquisa pelo IBGE sobre a situação de segurança e
insegurança alimentar do brasileiro.
Essa pesquisa era feita junto à Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio — Pnad — e passou agora a ser feita pela POF,
que é a pesquisa do orçamento familiar.
A
última pesquisa foi realizada em 2013 e divulgada em 2014.
Como é quinquenal,
ainda está sendo realizada, mas o pessoal está no campo e a divulgação desses
resultados deve sair no final de 2018 ou início de 2019.
O
que ocorre é que existem algumas situações em relação ao estado da segurança
alimentar, desde os que estão em segurança alimentar — de ter acesso aos
alimentos de uma forma regular e suficiente — até níveis de insegurança alimentar.
E
tem a insegurança alimentar grave, expressão que se usa para caracterizar a
fome, em que uma determinada família não teve disponibilidade de alimentos num
determinado período.
Essa
insegurança alimentar grave em 2013, por exemplo, quando foi feita a última
pesquisa, estava num nível bastante baixo, e é por isso também que em 2014 a
ONU colocou o Brasil fora do mapa do fome.
P.
Os dados agora apontam um retrocesso?
R. Quantas
pessoas passam fome?
Para
dizer alguma coisa próxima, vai ter que esperar um pouco, mas toda experiência
sempre mostrou que os números da extrema pobreza com os números da fome são
muito próximos.
Mas
a nossa advertência já leva a quase uma certeza.
Primeiro,
é preciso considerar que uma situação de extrema pobreza tem uma correlação
muito grande com a situação de fome.
Ou
seja, pessoas que estão numa situação mais extrema de pobreza estão fortemente
vulneráveis e sujeitas à fome, geralmente passando fome.
Por
isso, é importante trabalhar a questão da fome junto com a questão da pobreza,
e nós temos assistido a um empobrecimento muito acelerado da população, e sobre
isso nós temos os dados.
Em três anos, 2015, 2016, 2017, a gente, infelizmente,
voltou a 12 anos atrás em termos do número de pessoas em situação de extrema
pobreza.
Isso
nos leva a crer que aquela correlação pobreza versus fome sugere fortemente que
a gente já está, neste momento, numa situação bastante ruim, que deve aparecer
no final do ano com os dados da POF.
A
extrema pobreza está crescendo mais aceleradamente do que a pobreza, que voltou
há oito anos atrás.
P.
O que você está dizendo é que a tendência já aponta, mesmo que ainda não
confirmada, que o Brasil voltará ao Mapa da Fome?
R. Acredito
que, infelizmente, sim. Nós não temos ainda os dados dessa pesquisa que
comentei.
(Francisco Menezes) |
Eu
posso falar, sim, sobre os próprios dados da Pnad Contínua [Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua], que revelam esse empobrecimento acelerado
da população com aumento muito grande, e que varia de região para região, de
estado para estado.
O
Rio de Janeiro, por exemplo, vive uma situação em que a pobreza extrema, muito
ligada à questão do próprio desemprego, cresceu muito, triplicou em um ano [de
143 mil para 480 mil em um ano].
P.
Quais são as outras regiões?
R. O
Nordeste brasileiro e a região Norte têm um grau de pobreza maior do que o
Sudeste e o Sul, mas o nordeste teve um movimento muito positivo até 2014 no
sentido de recuperação, mas agora a gente volta a assistir a uma situação de
agravamento, porque já era mais vulnerável originalmente.
P.
E quais são os fatores desse crescimento da extrema pobreza?
R. São
vários fatores.
Avalio que, em primeiro lugar, a título de enfrentamento do que
se chamava desequilíbrio fiscal, se fez uma política que, de um lado, gerou uma
paralisia grande da economia, gerando com isso desemprego, e não resolveu o
problema do déficit fiscal.
A
receita, consequentemente, se reduziu e o país entrou num círculo vicioso de
paralisia e, ao mesmo tempo, crescimento do desemprego e da pobreza, sem
capacidade própria de gerar uma recuperação.
Esse
é um fator.
Não
querendo ser o dono da verdade, mas é a prática de uma política econômica
completamente equivocada nos três últimos anos.
Não
se pode esquecer de que 2015 já se experimentou uma política bastante recessiva
como opção para o enfrentamento das dificuldades que apareceram.
A
paralisia na construção civil, por exemplo, atinge as camadas pobres da
população, deixando um grande número de pessoas desempregadas ou subempregadas;
as próprias empresas que trabalhavam em torno do sistema Petrobras e tantas
outras que foram paralisando agravam esse quadro.
Ou
seja, o desemprego não pode ser desprezado nesse aspecto.
P.
A tomada de decisão de fazer o ajuste fiscal e congelar os gastos públicos por
20 anos deve ser considerada com efeito imediato?
R. Não
tenha dúvida.
A
emenda constitucional foi aprovada no final de 2016. Se você pega o orçamento
de 2016 — e estou falando dos programas sociais —, já se vê um fortíssimo
contingenciamento durante aquele ano.
Então
se viveu já em 2016 uma experimentação do corte de recursos.
A
proposta de orçamento para 2017 traz um enorme corte e para 2018 ainda mais.
É
o que nós hoje estamos chamando de estado de desproteção social, porque faltam
recursos de todos os lados.
No
aspecto da pobreza extrema, a gente está sentindo que em relação ao programa
Bolsa Família, estão sendo feito cortes grandes de contingentes de famílias
que, na verdade, ao contrário do que o governo alega, não são famílias que
simplesmente não prestaram conta adequadamente, mas são aquelas mais
vulneráveis que em geral têm mais dificuldades de prestar essas contas.
Muitas
famílias dentro do Bolsa Família foram cortadas e tinham, ou como única renda
ou uma parte importante de sua renda, vinda do programa, e isso tem uma
importância na questão alimentar por outras pesquisas que já fizemos.
A
gente sabe que os recebedores do Bolsa Família, na sua maior parte, gastam em
alimentação, pelo peso que o alimento tem nos seus próprios orçamentos.
P.
Essa questão do Bolsa Família é um levantamento ou uma percepção?
R. Não
é um levantamento.
Foram
cortadas 1 milhão e 500 mil famílias, pode-se ver pelos próprios dados do
governo.
Inclusive,
para 2018 o governo já coloca um orçamento menor para o Bolsa Família.
O
que está ocorrendo, o que a gente supõe, não temos comprovação ainda, é que
grande parte dessas famílias cortadas são as mais pobres.
E
uma outra causa é a questão dos preços, não só dos alimentos, mas outra questão
que pesa, o gás.
O
gás impacta muito sobre as famílias mais pobres.
Com
um aumento dos combustíveis de uma maneira geral, estamos começando a escutar
as primeiras manifestações do quanto isso está pesando.
Fora
o fato de que o aumento dos combustíveis gera um aumento dos gêneros
alimentícios.
P.
O Brasil é um dos principais produtores de alimentos do mundo e pessoas passam
fome. Como compreender essa situação?
R. O
Brasil tem indubitavelmente uma capacidade de produção de alimentos relevante.
Esse
não é o nosso problema, o da produção, mas o que ocorre é que existe uma
profunda desigualdade, inclusive, no campo.
(Do El País)
Fotos: El País
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