Quem acompanha a política brasileira
sabe que o PT e o DEM são antagonistas históricos.
O primeiro é a principal legenda da
esquerda no país, enquanto o segundo é uma ramificação democrática com origem
na Arena, partido que apoiou a ditadura militar.
Na Bahia, a disputa entre as siglas é
ferrenha há pelo menos duas décadas.
Atualmente, o petista Rui Costa ocupa o
palácio do governo, no bairro de Ondina, enquanto Antônio Carlos Magalhães Neto
comanda a capital, Salvador.
O prefeito, cujo avô governou o estado
três vezes e a cidade uma, chegou ao cargo em 2013.
Costa assumiu em 2015. Sempre em lados
opostos, eles tiveram momentos de duro embate, especialmente no impeachment de
Dilma Rousseff, em 2016, e na eleição de 2018, quando ACM Neto apoiou Jair
Bolsonaro.
De março para cá, porém, com a
instalação da pandemia do novo coronavírus, os dois estabeleceram uma trégua
político-partidária e passaram a trabalhar juntos no combate à doença.
“Eles substituíram temporariamente o
calendário eleitoral por uma agenda de governança da crise”, afirma o
cientista político Cláudio André de Souza, pesquisador da Universidade Federal
da Bahia.
“Apesar de infelizmente ser uma exceção, é o
que todo governante republicano deveria fazer: colocar o interesse público
acima dos demais.”
Na prática, Costa e ACM Neto passaram a
conversar toda semana, enquanto seus secretários de Saúde se falam diariamente
para alinhar as medidas de controle da transmissão do vírus.
Os dois encamparam a defesa do
isolamento social, pedindo à população que ficasse em casa, segundo as regras
definidas pela prefeitura e pelo estado.
Em cenas antes inimagináveis, fizeram lives juntos, transmitidas pelas redes
sociais de ambos, e concederam entrevistas, também juntos, para informar as
medidas contra a crise.
Ambos começaram a restringir a
circulação de pessoas já na segunda semana de março.
De comum acordo, decidiram que o estado
gerenciaria a distribuição dos leitos clínicos e de UTI tanto de sua rede
quanto da municipal.
“Essa unificação melhora a qualidade da
informação, do planejamento e, consequentemente, do serviço prestado à
população, que, na hora da doença, não quer saber se o médico é da prefeitura
ou do estado”, afirma Costa.
A prefeitura, por sua vez,
comprometeu-se a atender em sua rede os pacientes que viessem de outras
cidades.
A ocupação de leitos municipais e
estaduais destinados a pessoas com Covid-19 está em torno de 70% em Salvador,
depois de ter batido em 88%.
A capital baiana foi uma das primeiras a
suspender aulas e a barrar as operações de bares, restaurantes e shoppings.
Nas áreas com grande número de casos, a
prefeitura fecha os estabelecimentos por pelo menos sete dias, em ação que
envolve agentes municipais e a PM, em acordo com o governo estadual.
O mesmo tipo de parceria ocorre no
trabalho de distribuição de cestas básicas, medição de temperatura dos moradores
e higienização de ruas.
Um dos programas mais simbólicos da
união dos dois oponentes políticos é o de acolhimento de moradores de baixa
renda infectados com o vírus, mas que estão assintomáticos ou com sintomas
leves.
É destinado a quem mora em residências
pequenas e tem dificuldade de se isolar dos demais ocupantes da casa.
O governo instalou um alojamento em um
parque de exposições para 300 pessoas.
Ali, elas podem cumprir quarentena de
duas semanas até que deixem de ser transmissoras da doença.
Como incentivo para permanecer em
isolamento, o internado recebe uma cesta básica e uma bolsa de 500 reais —
metade paga pela prefeitura, metade pelo estado —, além de atendimento médico e
refeições.
No fim de maio, ACM Neto instituiu um
feriado de cinco dias para aumentar o isolamento e foi seguido por Costa, que
adotou a medida em oito cidades.
“As divergências partidárias não podem
impedir que a gente trabalhe em conjunto em uma situação de crise”, diz
o prefeito. “Transmitimos uma mensagem de maturidade para a população, que sente
mais confiança no poder público e passa a respeitar mais as restrições, que não
são fáceis.”
O esforço deu resultados.
Segundo o último boletim epidemiológico
do Ministério da Saúde, Salvador tem 80,9 mortes por Covid-19 em 1 milhão de
habitantes, enquanto outras capitais do Nordeste ostentam números bem mais
altos, como Recife (400,6) e Fortaleza (564,9) — nos dois casos, as cidades são
administradas por aliados políticos dos governadores.
Segundo pesquisa do jornal A Tarde, Costa tem a aprovação de 71%
dos soteropolitanos e ACM Neto, 76%.
“Esta pandemia está revelando quem realmente
tem responsabilidade pública”, afirma o cientista político José Álvaro
Moisés, coordenador do grupo de pesquisas de qualidade da democracia da Universidade
de São Paulo.
A trégua na Bahia é um bálsamo em meio à
polarização do país e contrasta com o comportamento desastroso de Bolsonaro,
que bateu de frente com a maioria dos governadores por rejeitar a política de
isolamento social e as orientações da ciência, o que o levou a perder dois
ministros da Saúde em menos de um mês.
Não por acaso, a parceria baiana
transformou os dois adversários em alvo de protestos de bolsonaristas
contrários ao isolamento social. Mais sintomático que isso, impossível.
(Por Veja)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.