A morte de um ente querido provoca uma
erupção de lembranças.
Muitos milhões de pessoas recordam que esse homem
impossível, Diego Armando Maradona, fez parte de suas vidas.
E continuará fazendo.
Estamos falando de alguém que
personificou o mistério do futebol: por que um simples jogo de bola adquire
tanto significado?
Dieguito, o “cara suja” de Villa
Fiorito, carcomido pela cocaína e pelo álcool, estava morrendo há tanto tempo
que ninguém pensava que pudesse morrer.
Mas ele o fez.
Na quarta-feira (22/11) ao meio-dia, seu
coração parou.
O outro, Maradona, “o 10”, “D10S”, herói
da Argentina e divindade profana, já havia assentado há anos um pé na história
e outro na mitologia.
É preciso dar um salto em direção à fé
para entender o fenômeno.
E levar em conta o peso da emoção e das vitórias
simbólicas na vida coletiva.
Do contrário, seria absurdo que, pela
morte de um jogador de futebol, o presidente da República Argentina, Alberto
Fernández, decretasse três dias de luto nacional.
E que oferecesse a Casa Rosada para
qualquer tipo de cerimônia.
E que as pessoas, em Buenos Aires e em outros
lugares, procurassem um lugar onde se reunir para chorar ―no funeral, são
esperadas um milhão de pessoas. Acontecem coisas muito mais importantes.
O mundo sofre o flagelo de uma pandemia.
Mas morreu Diego Armando Maradona.
O último capítulo começou a ser escrito
em 30 de outubro, dia em que completou 60 anos.
Alguém, em sua conta no Instagram, postou
uma mensagem do ídolo sobre as “mensagens maravilhosas” que a vida lhe dava.
Ele mal conseguia falar ou raciocinar.
Três dias depois, um hematoma foi
removido de seu cérebro.
Em 11 de novembro foi transferido da
Clínica Olivos para uma mansão em Nordelta, uma região de canais e ilhotas ao
norte de Buenos Aires.
A casa, alugada, tinha equipamentos
médicos e características que pareciam adequadas para que Maradona, ou melhor,
o pobre Diego, não continuasse bebendo.
Quase nada estava funcionando corretamente
em seu corpo.
Já não lhe ocorria nenhuma daquelas
frases antológicas.
Na quarta-feira, 25 de novembro, tomou o
café da manhã e cochilou, vigiado por um enfermeiro.
Por volta das 11 da manhã, começou a ter
asfixia e dores no peito. Nove ambulâncias foram socorrê-lo.
Nenhum médico conseguiu evitar a parada
cardiorrespiratória, que ocorreu por volta do meio-dia.
INCREDULIDADE
“Não pode ser”, disse o presidente
Fernández.
A incredulidade foi a sensação dominante
nos primeiros momentos.
Em um país sem ídolos unânimes, Maradona
era a exceção.
Era um ídolo porque em 22 de junho de
1986, no Estádio Azteca, na Cidade do México, marcou o melhor gol de todas as
Copas do Mundo; porque aquele gol eliminou a Inglaterra, apenas quatro anos
depois da derrota argentina nas Malvinas; porque seu país estava saindo de uma
ditadura e o gol assombroso convenceu os argentinos de que tudo era possível.
“Você nos levou ao topo do mundo, obrigado
por ter existido”, tuitou Alberto Fernández.
Com isso, com o gol supremo, a revanche
simbólica e a Copa do Mundo, teria bastado.
No entanto, havia mais.
“El Diego”, “El Pelusa”, era um menino
da Villa Fiorito, um pibe surgido da pobreza e dos terrenos baldios, um “cara
suja” que parecia concentrar a essência da Argentina popular.
Falava com frases redondas que se
espalhavam rapidamente e ficavam pregadas nas memórias.
Teve sucesso como apresentador de
televisão: sabia o que era o espetáculo, e que não havia espetáculo como ele.
Seu peronismo e seu esquerdismo
elementar, populista, refletiam um dos grandes filões que caracterizam a
sociedade argentina.
E jogava de acordo com o padrão onírico
que os fãs atribuíam ao perfeito jogador “do povo”: gênio, astúcia, brilho,
prazer.
Sempre Davi contra Golias.
Essas virtudes se ajustaram como uma luva
no espírito napolitano, onde é pranteado tanto quanto em sua cidade de origem.
Acrescentemos a isso o longo espetáculo
de sua autodestruição e de sua caótica vida familiar, quase paralelo ao de sua
glória esportiva.
Aqui interveio um elemento de cunho místico:
seus vícios e doenças eram lamentados e ao mesmo tempo interpretados, meio às
escondidas, como o calvário que corresponde a um ser messiânico.
Esse complexo raciocínio coletivo
poderia ser resumido em uma ideia: “Ele
se sacrificou por nós”.
A transformação do jogador de futebol
mítico em mito, sem mais, era óbvia nos últimos tempos.
Maradona era técnico do Gimnasia y
Esgrima de La Plata, o clube mais antigo da América Latina e o mais desprovido
de títulos.
Quando podia ir ao estádio o fazia arrastando as pernas e ofegando.
Custava-lhe manter uma conversa.
Como técnico, mal conseguia cumprir as
funções mais básicas.
Como estandarte, cumpria com sobras: não se sentava no
banco, mas em um trono.
Um sócio do Gimnasia y Esgrima o
explicou assim: “Temos Maradona e com isso já estamos na história; o resto é menos
importante”.
Nos próximos dias, as precauções contra
o coronavírus não valerão.
Haverá exatamente o contrário da
distância física.
Sua despedida, apesar da pandemia, será
comparada inevitavelmente com as outras grandes emoções fúnebres do passado
argentino: Gardel, Evita, Perón.
Será uma procissão cheia de dor na Casa
Rosada.
Massiva e destroçada.
Como a vida de Maradona.
(Enric González - El País)
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