*Por Eduardo Sodré
A voz baixa que veio acompanhada da fala
pausada fez o operador de som aumentar o volume em um restaurante da capital
paulista.
Dr. Carlos disse "boa tarde" e, no segundo seguinte, o
burburinho ao redor cessou.
Ouvia-se apenas o empresário e os pratos
sendo empilhados na cozinha.
Era dezembro de 2019, a última aparição
pública de Carlos Alberto de Oliveira Andrade.
O empresário, que enfim realizara o
sonho de ter uma montadora para chamar de sua, reuniu a imprensa para anunciar
um programa de aluguel de carros da Caoa Chery.
A plateia estava pouco interessada no
assunto.
O que todos queriam saber é se o dr.
Carlos iria confirmar a compra da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo
(Grande São Paulo).
Seria o passo mais ousado entre tantos
outros passos ousados da sua história.
O primeiro foi dado no fim dos anos
1970, quando o jovem cirurgião de Campina Grande (PB) - daí vem o
"doutor" - abriu sua primeira concessionária.
Dr. Carlos contava que a ideia surgiu a
partir de um calote: ele comprou um Ford Landau, mas não recebeu.
A empresa faliu e o sedã de luxo virou
um papel sem valor.
O doutor então negociou a compra da
loja.
Em julho de 1979, pagou algo entre 4 e 5
milhões de cruzeiros - e afirmava ter
descontado o valor do carro no negócio.
A voz baixa e pausada deve ter se
avolumado durante a negociação.
Dr. Carlos era incisivo ao demonstrar
insatisfação, e o mesmo ímpeto que tinha para expandir seus negócios era usado
nos distratos.
Foi assim com a Renault.
O empresário já tinha uma rede de
concessionárias consolidada quando se tornou importador da marca francesa, em
1992.
"Eu criei a empresa CA de Oliveira
Andrade, mas o pessoal da Renault abreviou para Caoa", disse à
Folha em entrevista publicada em dezembro de 2007.
Após um início harmonioso, a disputa
pela representação da marca foi parar na Justiça.
Em 1995, o dono do grupo Caoa pediu
indenização à montadora francesa para deixar de ser representante da marca - que
se preparava para assumir as operações no Brasil.
O empresário afirmava que havia um
contrato prévio "não reduzido a termo escrito".
Esse acordo verbal, segundo o doutor,
não impunha prazos para o fim da parceria.
A disputa durou até 1998.
Às vésperas de iniciar a produção na
fábrica de São José dos Pinhais (PR), a separação foi confirmada e a Renault teve
de indenizar o grupo Caoa.
Naquele ano, a empresa assumiu as
operações da japonesa Subaru no Brasil.
O passo mais importante viria em 1999,
quando a sul-coreana Hyundai foi incorporada ao portfólio.
A marca estava desacreditada no mercado,
após idas e vindas.
Até então, importadores haviam trazido
carros pouco interessantes tanto em estilo como em mecânica.
Mas uma revolução industrial ocorria na
Coreia do Sul, e o dr. Carlos chegou na hora certa.
A marca cresceu nos anos 2000 com sonhos
de consumo a baixo custo diante dos concorrentes.
Tucson, Santa Fé e Azera tornaram-se
figurinhas repetidas nas ruas, sempre pintados de preto ou prata.
Em 2007, teve início a montagem
nacional, resultado de um investimento de R$ 1,2 bilhão.
Benefícios concedidos no estado de Goiás
levaram o negócio para a cidade de Anápolis.
A produção teve início com o
caminhãozinho HR, cujas peças vinham da Coreia do Sul.
A partir de então, dr. Carlos reduziu as
aparições públicas.
As empresas ganharam novos rostos, mas
nenhuma decisão dos diretores-executivos era tomada sem a aprovação do fundador
e presidente do conselho.
Era o "doutor" quem definia os
investimentos vultosos em publicidade, com propagandas que não raramente
paravam no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).
Entre verdades, exageros e bravatas, a
Hyundai se tornou a marca mais admirada e inovadora do mundo - ao menos nos comerciais.
Mas a história se repetiu: se no passado
a Renault brigou na Justiça para tirar a representação das mãos do grupo Caoa,
chegou a vez de os sul-coreanos fazerem o mesmo.
A disputa tornou-se pública em 2012,
quando foi lançado o Hyundai HB20, produzido em Piracicaba (interior de São
Paulo).
A fábrica não tinha qualquer relação com o antigo importador: era 100%
administrada pela matriz.
Mas a cizânia se manifestou, de fato, na
rede concessionária.
As lojas de importados e modelos
produzidos em Anápolis não poderiam vender os novos carros nacionais nem
oferecer serviços de oficina.
Uma confusão e tanto para o consumidor.
Com mais um fim de relacionamento no
horizonte, chegou a hora de o dr. Carlos se voltar para o mercado chinês.
A claudicante Chery - que, em agosto de
2014, começara a produzir em Jacareí (interior de São Paulo) e via o negócio
naufragar em meio a brigas com o sindicato local e a crise econômica -,
tornou-se o caminho para o sonho maior.
Em 2017, o grupo Caoa assumiu 50% das
operações da montadora chinesa.
Surgia a Caoa Chery.
Engenheiros de longa história na Ford
foram contratados para adequar os carros ao gosto do brasileiro.
A propaganda seguiu o padrão e a voz que
fez a fama da Hyundai.
Nos comerciais de TV, o locutor Ferreira Martins
alardeava "a melhor tecnologia do mundo."
Os laços do grupo Caoa com a Ford
pareciam prestes a se consolidar de vez com a iminência de adquirir a fábrica
de São Bernardo.
Houve até um evento constrangedor
promovido pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em setembro de 2019.
Diante de executivos da Ford e do doutor, foi anunciado um plano de compra em
duas etapas.
No almoço realizado três meses após
aquela reunião, dr. Carlos disse que a compra havia se tornado "uma
esperança remota".
Passados sete meses, a fábrica foi
negociada com a Construtora São José.
Em janeiro deste ano, a Ford anunciou o
fechamento das outras unidades de produção no Brasil e, mais uma vez, o grupo
Caoa surgiu como interessado para adquirir a planta de Camaçari (BA).
Dr. Carlos faleceu neste sábado (14) aos
77 anos, antes do desfecho dessa nova história.
Mas viveu para vencer mais uma briga.
Em julho, a Justiça decidiu que sua
empresa poderá importar modelos Hyundai até 2028.
Em nota, o grupo Caoa disse que "dr. Carlos estava com a saúde debilitada
por conta de um tratamento de saúde e faleceu durante o sono ao lado de sua
esposa e filhos."
(Folha Press. *Eduardo Sodré – Jornalista
e colunista da Folha de São Paulo)
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