Por Mauro Ferreira*
Se o maior atestado da perenidade da
obra de um compositor é a permanência das canções desse artista na memória
popular, vale recorrer ao clichê para afirmar que Renato Russo vive.
Morto há exatos 25 anos, Renato
Manfredini Junior (27 de março de 1960 – 11 de outubro de 1996) saiu
precocemente de cena com 36 anos de vida e 18 de carreira.
Foi tempo curto demais diante da
dimensão do talento do artista, mas tempo suficiente para a construção de obra
que conferiu imortalidade a esse cantor e compositor de origem carioca e
vivência brasiliense que entrou em cena em 1978, primeiramente como integrante
da banda punk Aborto Elétrico.
A propósito, é impressionante a
atualidade de uma das composições seminais do cancioneiro de Renato Russo, “Que país é este?”, música composta em
1978 para o grupo Aborto Elétrico, revivida em shows da Legião Urbana – a banda
posterior que, fundada por Russo em 1982, catapultou o artista ao estrelato
nacional – e somente gravada em disco em 1987, como música-título de álbum
improvisado pela Legião para solucionar impasse criativo.
Além de captar as turbulências da alma
humana, Renato Russo soube radiografar momentos sociais e políticos do Brasil.
Apresentada no primeiro álbum da Legião Urbana, Geração coca-cola é impiedoso
retrato geracional da juventude dos anos 1980.
Ele próprio um filho da
revolução, Russo se assumiu burguês e fez da obra uma religião particular que
angariou devotos Brasil afora.
Se esse cancioneiro continua sendo
objeto de culto, a ponto de ainda gerar documentário sobre o artista (a partir
do acervo pessoal administrado pelo herdeiro do artista), filmes roteirizados a
partir de letras de músicas (o próximo, Eduardo e Mônica, estreia em 2022) e
shows (consta que Seu Jorge irá abordar o repertório de Renato em cena), é
porque tal cancioneiro tem força atemporal.
Quem um dia irá dizer que não existe
razão em tantas canções filosóficas e românticas que pregaram ética nos
relacionamentos amorosos, ocupando progressivamente na obra do compositor o
lugar de músicas que versavam sobre questões públicas?
Não é à toa que, a partir do quarto
álbum da Legião Urbana, As quatro estações (1989), o culto a Renato Russo
adquiriu proporções quase messiânicas.
Sem menosprezar a contribuição de Dado
Villa-Lobos e Marcelo Bonfá (parceiros de Renato na criação de muitas músicas
da banda), o grande pensador da Legião Urbana foi Renato Russo, catalisador das
atenções.
Russo tinha habilidade para radiografar
anseios e estados nublados da alma, como fez em Tempo perdido (1986), hit
smithiano do segundo álbum da banda, Dois (1986), disco que alçou a obra de
Russo a um patamar mais alto com músicas como Índios (1986) e Quase sem querer
(1986), canção desde então sempre regravada e creditada também a Dado
Villa-Lobos e ao baixista Renato Rocha (1961 – 2015).
Mudaram as estações, a indústria da
música e a forma como canções são produzidas e ouvidas.
Mas permanece intacto o poder de sedução
de melancólica canção introspectiva como Por enquanto (1985), cuja letra pode
ser entendida tanto como a exposição do fim de um relacionamento afetivo quanto
como a dissolução de um ideal coletivo.
Vento no litoral (1991), tristíssima
canção do álbum V (1991), é outro exemplo de salutar ambiguidade que somente
reforça o valor da música.
Os versos depressivos podem retratar
tanto o fim de um amor como o de forte amizade – e foi sob o prisma da
fraternidade entre amigos que a música inspirou peça de grande empatia, Aonde
está você agora?, escrita em 1994 pela dramaturga Regiana Antonini.
Em suma, Renato Russo vive porque deixou
obra pautada pela atemporalidade, embebida em sentimentos universais e emoções
reais.
Se Perfeição (1993) ainda é a trilha
sonora ideal para apontar a estupidez coletiva de parte da nação, Pais e filhos
(1989) é canção que tem atravessado dimensões e fronteiras ao retratar relações
familiares abaladas pela grande fúria que move o mundo e o ser humano à procura
de amor e paz.
Renato Russo pode não ter explicado essa
“grande fúria do mundo”, mas deixou pistas preciosas em letras que resistem sem
música, mas que, a reboque de melodias, vem sendo a trilha sonora de sucessivas
gerações.
Até porque, em qualquer época, sempre
haverá jovens perdidos no próprio tempo.
*Mauro Ferreira é jornalista carioca que
escreve sobre música desde 1987, com passagens em 'O Globo' e 'Bizz'.
(Por Mauro Ferreira – Blog do Mauro
Ferreira – Por & Arte/g1)
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