Poderia ser o fim de uma vida, mas não
foi.
O "tentante", como o major
explica que é correto chamar quem antes era designado como "suicida",
desistiu, e o episódio acabou dando a Munhoz uma ideia que salvaria, a partir
dali, muitas outras vidas.
"Percebi que ainda que a pessoa
desistisse do ato, não tinha um desfecho necessariamente positivo. Nós — e digo
não só minha equipe, mas também policiais militares e profissionais do SAMU,
que também atendem esses casos — não tínhamos instruções para nos importarmos
com aquela pessoa a fundo. Era tratado simplesmente como um chamado: você
distraía a pessoa e a agarrava, para acabar com a ocorrência. Não se importava
com o que aconteceria depois", conta Munhoz.
Outras opções usadas pelas equipes de
emergência eram mangueiras de água com potência forte e tiros de taser (que
causa choques), que tinham como objetivo afastar o tentante do perigo, mas na
avaliação do major, só agravavam a situação, sem oferecer qualquer acolhimento
à pessoa.
Naquela torre do bairro Vila Campanela,
o profissional ficou com a pessoa em risco por seis horas.
Nos primeiros trinta minutos, era o
major do corpo de bombeiros de São Paulo e um tentante.
"Depois, eu passei a conhecer
aquele homem. Ingressei em seu mundo e na sua história, e eu começo a
compreender que ele tem uma vida repleta de sofrimentos, angústias, e também de
vitórias. Depois de uma hora ali em cima, a última coisa que eu gostaria é que
o Alcides (nome fictício) morresse."
Munhoz procurou o CVV (Centro de
Valorização da Vida), ferramenta pública que realiza apoio emocional e
prevenção do suicídio.
Lá, teve as primeiras lições sobre
acolhimento, escuta compassiva, e começou a ler e a escrever sobre o tema, e a
participar de simpósios e palestras.
Foram dez anos de estudo até que o major
criasse uma técnica humanizada para assistência a pessoas que tentassem tirar a
própria vida.
Com base em pesquisa e experiência,
montou, como seu projeto de mestrado, um curso que hoje já é aplicado em
serviços de emergência público de 20 Estados brasileiros e é aberto a
profissionais de outras áreas, como médicos, psicólogos, e outras profissões
que lidem com o tema diretamente ou indiretamente.
Diógenes Munhoz evitou, diretamente, o
suicídio de 57 pessoas — e estima que esse número tenha sido significativamente
maior por meio de outros profissionais que utilizam a técnica de humanização.
"Vi a face da morte 57 vezes e
garanto que ela não é bonita. Ela é triste, cinza, opaca e a gente precisa
estar lá para acolher e abraçar essa pessoa. Ajudar a fazer com que esta pessoa
entenda que existem fatores de proteção que podem ajudá-la a dar prosseguimento
à vida, e que ela não consegue enxergar a luz do final do túnel simplesmente
porque não passou do meio do túnel. Apesar de eu ter dado o pontapé inicial, o
curso só se tornou possível porque contei com a ajuda de muitos profissionais. Sempre
digo que o pódio é solidário, não solitário."
No 2º semestre, a técnica vai ser
exportada para fora de Brasil.
Uma equipe do Corpo de Bombeiros de
Portugal receberá o treinamento.
O
QUE É OFERECIDO NO CURSOSão 40 horas de aula divididas em um
período de uma semana, e que passam por sete tópicos, incluindo o histórico da
abordagem técnica, estatísticas do país, aspectos técnicos e fases da abordagem
de dissuasão, diferenças entre grupos de tentantes, prevenção do suicídio e um
módulo mais amplo, sobre saúde mental.
"Quem passa pelo treinamento
aprende, entre outras coisas, a distinguir os tipos de tentantes, que são
classificados entre agressivos, psicóticos ou depressivos. Existem sete
ferramentas de linguagem e sinais corporais que o abordador pode utilizar. A
grande 'sacada' da técnica é que não vou falar com depressivo da mesma forma,
com os mesmos gestos, que faria ao abordar uma pessoa psicótica",
aponta Munhoz.
Outra mudança que ocorreu após a criação
do curso é o encaminhamento do tentante.
Antes, a pessoa era levada ao
pronto-socorro mais próximo.
Na maioria das vezes, não era atendida
por um psiquiatra, mas por um clínico geral.
Hoje, prevê-se o encaminhamento para o
CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e a possibilidade de internação.
"Quando essa pessoa era só
medicada e liberada, são grandes as chances de ela tentar suicídio de novo."
O major é doutorando em saúde mental no
Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP (Polícia Militar do Estado de São
Paulo), e atualmente e sua pesquisa é focada nos resultados que a técnica já alcançou
no Estado de São Paulo.
"Os levantamentos apontam um ganho
de ao menos 23%. Se salvarmos uma vida, toda uma carreira já estaria paga. É só
perguntar para a mãe daquela pessoa. Mas 20% de ganho, em um estado que
registra 2.500 ocorrências por ano, de acordo com o Corpo de Bombeiros (sem
levar em conta as ocorrências anotadas pela polícia militar e SAMU), é algo
muito significativo."
Em duas ocasiões, Munhoz foi procurado
posteriormente por pessoas que salvou.
"Já teve um rapaz que era
cientista, que me escreveu nas redes sociais. E em uma palestra, quando eu
acabei a palestra, um rapaz se levantou, fez um discurso e findou dizendo que
estava ali só porque eu o tirei do lugar onde ele tentou o ato. Foi bem
emocionante."
DEPRESSÃO
É A PRINCIPAL CAUSA DE TENTATIVA DE SUICÍDIO
Segundo a ABP (Associação Brasileira de
Psiquiatria), cerca de 97% dos suicídios têm ligação com transtornos mentais,
especialmente a depressão.
No Brasil, a doença é um problema de
saúde pública.
O país é o quinto com maior incidência,
apresentando um número de casos superior ao de diabetes, segundo Pesquisa
Vigitel 2021, do Ministério da Saúde.
Além disso, dados da ANS (Agência Nacional
de Saúde Suplementar) apontam um aumento de 167% da utilização de serviços
relacionados à saúde mental de 2011 a 2019.
Em casos de depressão resistente ao
tratamento — quando há falha de dois tratamentos anteriores administrados em
dose e tempo adequados — estima-se elevação do risco de morte por suicídio em
sete vezes.
Segundo estudo recente publicado na
revista The Lancet, até 80% das pessoas afetadas pela doença no mundo sequer
têm um diagnóstico.
Já o levantamento realizado pelo
Instituto Ipsos a pedido da Janssen, empresa farmacêutica da Johnson &
Johnson, que ouviu 800 pessoas com ou sem relação com a depressão de 11 Estados
brasileiros, revela que entre os diagnosticados entrevistados, o tempo médio para
procurar ajuda foi de 39 meses (três anos e três meses).
A demora ocorreu, principalmente, por
falta de consciência de se tratar de uma doença (18%), resistência (13%) e medo
do julgamento, reação dos outros ou vergonha (13%).
"Essa demora no tratamento para a
depressão pode trazer consequências devastadoras, como a cronificação da
doença, agravamento dos sintomas, diminuição da eficácia dos tratamentos, perda
de anos produtivos, impacto econômico e severa diminuição da produtividade, e
todo um prejuízo em seu convívio familiar e social. A depressão precisa ser
levada à sério", afirma Cintia de Azevedo Marques Périco,
professora de psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC e integrante da
Comissão de Emergenciais Psiquiátricas da ABP (Associação Brasileira de
Psiquiatria).
Dados da pesquisa da Janssen demonstram
que ainda há falta de entendimento sobre sua gravidade e seu impacto na vida do
paciente e de todos ao seu redor: apenas 10% acreditam que a depressão é uma
doença com base biológica (e repercussões físicas no corpo).
Outros 35% não acham que pode ser
tratada com medicamento e 36% acreditam que para superar a doença é preciso
força de vontade.
"No senso comum, existe uma
banalização daquilo que se entende por ser psicológico, com uma falsa ideia que
não precisa de tratamento. No entanto, atualmente sabemos o quanto ter uma
função psíquica alterada impacta no indivíduo como um todo. Não tratar a
depressão como uma doença grave e que pode resultar em uma emergência psiquiátrica
pode trazer sérias consequências para os pacientes e para a própria sociedade",
afirma Périco.
(BBC Brasil)
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