Um homem calmo, educado, respeitoso e,
principalmente, gentil.
Assim é descrito o sargento Claudio
Henrique Frare Gouveia, de 53 anos, por conhecidos, colegas de farda,
comerciantes próximos ao batalhão onde ele trabalhava, nas redes sociais e por
alunos de uma associação onde ele ensinava patinação.
Mas, na segunda-feira (15/5), ele usou
um fuzil para matar dois colegas de farda, o sargento Roberto da Silva e o
capitão Josias Justi, comandante da PM na cidade de Salto, no interior de São
Paulo.
Em seguida, Gouveia se entregou a outro policial.
A motivação do crime ainda não foi
esclarecida oficialmente, mas a reportagem apurou que o duplo homicídio pode
ter sido provocado por frequentes desentendimentos entre os policiais,
principalmente por conta das escalas de trabalho.
Casado, o capitão Justi deixa dois
filhos, de 3 e 5 anos.
Já o sargento Silva, também casado,
deixa três filhos, de 15, 18 e 29 anos.
Ambos foram enterrados no cemitério Pax,
em Sorocaba.
Procuradas, a Secretaria da Segurança
Pública e a Polícia Militar não deram detalhes sobre o caso e se resumiram a
dizer, por meio de uma nota, que "todas
as providências de Polícia Judiciária Militar estão em andamento neste momento
e a Corregedoria da Instituição acompanha as apurações".
Há um mês, a reportagem da BBC News
Brasil entrevistou o sargento Claudio Gouveia.
Durante uma conversa de quase uma hora,
a reportagem buscou entender por que ele era considerado nas redes sociais,
especialmente no YouTube, um dos policiais "mais gentis do Brasil"
e o que ele pensava disso.
Durante a entrevista, o sargento Gouveia
agradeceu os elogios recebidos nas redes sociais e afirmou que apenas fazia o
trabalho dele, seguindo o manual da Polícia Militar.
"A polícia foi aprendendo [ao longo
dos anos] com as situações adversas que ela foi encontrando e foi melhorando.
Não tive nenhuma ocorrência grave na minha vida, na minha carreira. Hoje, eu
estou com 32 anos de polícia. Passei por diversos batalhões por consequência do
meu trabalho",
afirmou.
DUPLO
HOMICÍDIO
Na terça-feira (16/5), a BBC foi até
Salto, onde conversou com dezenas de pessoas, entre testemunhas do crime,
comerciantes da região e também com a mulher de Gouveia.
A intenção foi saber mais sobre o que
motivou a atitude do sargento contra seus colegas.
A reportagem teve acesso ao boletim de
ocorrência feito pela Polícia Militar, que contém o depoimento de 12 policiais
militares que estavam no batalhão no momento do duplo homicídio.
De acordo com as testemunhas, por volta
das 9h, Gouveia disse para os militares que haveria um treinamento, que seria
feito com fuzis na parte externa do batalhão, e pediu para que todos saíssem do
prédio e fossem até o local.
Quando todos saíram, dizem as
testemunhas, ele trancou a porta e foi para a sala onde estavam as vítimas.
Um policial disse à reportagem que, no
caminho, ele passou pelo setor administrativo e fez um alerta.
"Ele disse para as pessoas não se
preocuparem porque não aconteceria nada com elas. Que poderiam ouvir barulhos,
mas que ficaria tudo bem com as outras pessoas da equipe", afirmou
à reportagem um policial que pediu para não ser identificado.
Armado de um fuzil, ele fez diversos
disparos contra Roberto da Silva e Josias Justi, contam as testemunhas.
As vítimas chegaram a ser socorridas
pelo helicóptero Águia da PM, mas não resistiram aos ferimentos.
Logo após os tiros, Gouveia algemou a si
mesmo e se entregou, segundo sua defesa.
A previsão era de que ele passasse por
uma audiência de custódia na terça-feira (16/5) para decidir se ele seria solto
ou mantido preso no presídio Romão Gomes, dedicado a policiais militares, na zona
norte da capital paulista.
No entanto, ele passou mal e a audiência
foi remarcada para esta quarta (17/5).
Com bandeiras a meio mastro, o batalhão
funcionou normalmente no dia seguinte, mas com um profundo clima de tristeza.
Os policiais dizem que a tropa está
psicologicamente abalada.
"Está todo mundo arrasado. Ninguém
tem condições de trabalhar aqui hoje. O enterro estava lotado e a nossa equipe
foi ao velório. Ninguém consegue acreditar no que aconteceu",
relatou um dos PMs à reportagem.
Uma comerciante da região, que pediu
para não ser identificada, disse que o sargento era visto frequentemente
ajudando pessoas, como vizinhos e moradores de rua.
"Foi por causa dessa bondade dele
que as pessoas ficaram chocadas quando descobriram que foi ele [o autor do
crime]. É inacreditável", exclamou.
Outro, disse que faria um almoço para os
soldados nesta semana e que já tinha inclusive comprado as carnes, a pedido do
capitão Josias Justi.
"Eu não tenho do que reclamar de
nenhum deles. Conheço os policiais desse batalhão e não tem como acreditar no
que aconteceu, principalmente o Gouveia. Eu não julgo porque não sei o que
passou na cabeça dele, mas foi algo completamente imprevisível",
afirmou à reportagem.
Questionado sobre quais seriam as
possíveis motivações, o policial se resumiu a dizer: "Muita pressão".
Na terça, a BBC também conversou por
telefone com a mulher do sargento Gouveia.
Ela disse que, ao menos por enquanto,
não vai comentar o caso.
Mas mandou algumas fotos do policial durante as aulas
de patinação e afirmou que ela está extremamente abalada.
Procurada, a Polícia Militar não
informou se Gouveia e a mulher dele, também PM, recebiam acompanhamento
psicológico nem mesmo qual seria a motivação do crime.
A reportagem não conseguiu contato com
as famílias das vítimas do crime.
Nascido no Paraná e criado em Araçatuba,
no interior de São Paulo, o sargento Gouveia já atuou também na capital
paulista, em batalhões da zona sul e central.
Em Salto há dez anos, ele contou para a
BBC que entrou na polícia por influência do pai.
"Ele foi agricultor por muito
tempo, analfabeto. Era o sonho dele entrar no Exército ou virar policial. E
parte dos brinquedos que ele dava para a gente eram viaturas e distintivos.
Nisso, servi o Exército e surgiu a oportunidade de prestar concurso. Prestei,
passei e estou até hoje, incentivado pelo meu pai", contou ele.
Ele disse ter iniciado a carreira na
polícia em 1991 e que se orgulhava de não ter se envolvido até então em nenhuma
ocorrência grave.
Durante toda a entrevista, ele manteve
um tom elogioso à corporação e citou uma evolução na conduta da tropa como um
todo.
'ENQUADROS
GENTIS'
Em um vídeo de pouco mais de um minuto,
registrado por uma câmera acoplada ao capacete de um motociclista abordado na
região de Salto, o sargento Gouveia conversa com o homem de maneira cordial e
respeitosa.
Com uma postura receptiva e sem armas em
punho, ele pergunta o nome e o que o piloto está carregando no baú.
"Marmita e bolo", responde o
motociclista na sequência.
"Senhor [nome do motociclista],
está sendo desencadeada a Operação Rodovia Mais Segura em todo o Estado de São
Paulo, simultaneamente. Desce um pouquinho (da moto), põe no pezinho e
apresente o documento do senhor", disse com calma o experiente
sargento Gouveia.
O registro o incluiu no rol de uma série
de vídeos publicados no YouTube que reúne os "Enquadros mais gentis do Brasil".
O que o destaca em meio aos outros
colegas de profissão incluídos na edição é a quantidade de comentários
elogiosos.
"Esse policial tem meu completo e
absoluto respeito. Policial digno e exemplar. Que pena que nem todos são assim
tão simpáticos", diz o mais curtido deles.
Entre as dezenas de comentários que
rasgam elogios ao sargento, um deles também destaca o comportamento do oficial
sem a farda.
"Ele é meu treinador de hóquei.
Ele é um dos melhores policiais que já conheci. Conheço ele de farda e na casa
dele. Um exemplo de cidadão e de policial. Ele tem um projeto social onde
ensina patinação aqui no meu bairro. Ele é muito respeitado na comunidade local",
afirmou.
UM
PM QUE PATINAVA
Durante a entrevista à BBC News Brasil,
os momentos que mais empolgaram o sargento Gouveia foram quando ele foi
perguntado sobre as aulas de patinação que oferecia no bairro onde morava em
Salto.
"A minha atuação na comunidade lá
se destaca. A gente consegue atingir mais de 300 pessoas, entre os que já
saíram, que se formaram, e os que ficaram e hoje são voluntários. Nós hoje
temos psicólogos, professores de história, profissionais liberais. Todo tipo de
pessoa. Alunos, adolescentes que se tornam instrutores, ficam lá dentro do
Instituto e continuam dando aula de patinação. Tudo de graça", contou.
São 30 voluntários que participam das
aulas gratuitas.
Até mesmo o equipamento é oferecido pelo
sargento.
As pessoas que se destacam são chamadas
para participar do time de hóquei da cidade, apelidado de Jump City, uma
brincadeira com o nome da cidade em inglês.
"O nosso foco aqui é só cuidar da
criançada, da população", afirmou.
Na entrevista, o sargento Gouveia
criticou quem usa casos de violência policial para generalizar o comportamento
da corporação.
"Ocorre uma ocorrência lá no
Amazonas e a pessoa não diz que foi lá no Amazonas, que foi aquele policial.
Uma ocorrência foi lá no Pará. Você teria que falar: 'Foi um policial militar
lá do Pará que cometeu aquela ocorrência e está sendo submetido a todo tipo de
situação administrativa, respondendo por um fato que se tornou crime'. [Mas]
não, a pessoa fala 'a Polícia Militar'. Hoje, com a globalização e a
disseminação da notícia, é muito fácil. As pessoas acabam colocando no mesmo
tonel", afirmou.
Na ocasião, o sargento ressaltou as
qualidades que um policial deve ter para lidar com o público e não se exaltar
durante uma abordagem, por exemplo.
"Para lidar com ocorrência, com o
público, o policial militar precisa estar preparado emocionalmente, estar
preparado espiritualmente, sabendo que ele corre o risco de ser ofendido e não
levar para o lado pessoal, apenas profissionalmente. Então, se houver
necessidade do emprego da força, será feito um escalonamento conforme está no
manual. Mas o que eu posso adiantar é que isso é difícil de acontecer, uma vez
que, se você vai trabalhar, você já está no controle de desviar de toda aquela
energia negativa", explicou.
No fim da conversa, a reportagem da BBC
pediu que o sargento Garcia mandasse um recado para as pessoas que criticam e
têm medo do trabalho da PM, e também aos policiais que agem de maneira
truculenta.
"Eu posso dizer para tu, tanto
para os policiais militares, quanto para a população amiga num contexto geral.
A Polícia Militar está aqui para servir e proteger. E posso dizer que todos nós
policiais militares estamos atuando sobre a proteção de Deus, que é o ser mais
divino que tem. Sob a proteção dele, a gente atua na defesa da vida, da
dignidade da pessoa humana, de todos os direitos, integridade física, de tudo o
que tem que ser preservado. Essa é a atuação da Polícia Militar",
afirmou.
E encerrou com um convite.
"Eu quero agradecer a
oportunidade. Muito obrigado. Você é um excelente profissional. E fica aberto
um convite para você tomar café conosco e conhecer o nosso coronel. Esse
pensamento que eu tenho é o mesmo do nosso coronel, o [Emerson] Drague. Ele
atua com o batalhão dessa forma. É assim que ele comanda os policiais, assim
ele quer que os policiais trabalhem. Ele é um excelente comandante. Então, fica
aberto o convite para o senhor vir para cá conhecer a turma, conhecer Itu, uma
das cidades mais antigas do país. Eu espero que essa notícia brilhe a Polícia
Militar".
(Por BBC e Felipe Corazza)
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